Ricardo Rocha Foto: Tolga Kocak/Free Images A humanidade ainda não sabe – e talvez nunca descubra – quem, de fato, inventou a roda. Certo é que foi uma das primeiras atividades de engenharia da história, há pelo menos 5 mil anos. Foi a engenharia que nos tirou das cavernas, pois, em essência, ser engenheiro é estudar e transformar um objeto, material, estrutura ou substância em algo útil, a partir do conhecimento científico.
Dizendo assim, parece simples. Entretanto, nunca foi – e, ao que tudo indica, o processo deve se tornar ainda mais complexo nas próximas décadas. As tecnologias progridem em nível exponencial e, com o desenvolvimento da inteligência artificial e as transformações e implantação da indústria 4.0, ainda é incerto a que ritmo as mudanças irão ocorrer nos próximos anos. Como preparar futuros engenheiros para uma sociedade que se reinventa desta forma é um desafio que exige visão e cuidado.
Recentemente, o Ministério da Educação, por meio do Conselho Nacional de Educação, adotou novas diretrizes curriculares para os cursos de graduação em Engenharia de todo o país, com prazo de adequação dos projetos dos cursos estipulado em no máximo três anos. A medida tem o objetivo de flexibilizar a grade curricular, com a justificativa de focar na prática e trabalhar de maneira interdisciplinar, de acordo com as atuais necessidades do mercado. Aqui, entretanto, é que se encontram pontos extremamente delicados: as necessidades do mercado são necessariamente as mesmas da sociedade?
Na graduação, uma conta errada leva a notas baixas e à possível retenção do aluno; no mercado, um cálculo equivocado pode custar vidas
Diferentemente do documento anterior, que datava de 2002 – e, sim, carecia de atualização em virtude das transformações em nossa sociedade –, as novas diretrizes não preveem uma carga horária mínima dedicada a disciplinas de base, como Química, Matemática e Física. Se antes havia a obrigatoriedade de fixar cerca de 30% da carga horária mínima para essas áreas, agora o texto menciona apenas que tais disciplinas devem existir durante o curso.
Da forma como está, a medida deixa abertura para as próprias instituições de ensino definirem a distribuição desses conteúdos durante a vida letiva, ao passo que, como já foi noticiado várias vezes pela imprensa nacional, a educação básica, sobretudo o ensino das ciências, é deficitária no país. O risco é de que os egressos saiam da academia sem os fundamentos necessários para um exercício profissional ético e coerente com as necessidades da sociedade. E esse risco não deve ser minimizado.
Diferentemente do que acontece na graduação, quando uma conta errada leva a notas baixas e à possível retenção do aluno, no mercado, um cálculo equivocado pode custar vidas, como infelizmente ocorreu em acidentes recentes em barragens no Brasil. Na qualidade de órgão que fiscaliza a atuação dos profissionais das engenharias, agronomias e geociências, o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Paraná (Crea-PR) salienta a gravidade que um texto aprovado sem um debate mais amplo e aprofundado pode apresentar.
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Além disso, a expansão dos cursos de graduação a distância (EAD) também nos preocupa. Soa contraditório que as novas diretrizes curriculares mirem uma maior atenção à prática durante a formação acadêmica, num momento em que, na outra mão, o ensino não presencial ganha apelo entre estudantes e universidades. A experiência é nova e deve ser avaliada meticulosamente; entendemos que cursos na área tecnológica não devem ser realizados integralmente no formato da EAD. Existem atividades, especialmente as práticas, que só podem atender ao seu propósito se realizadas de forma presencial, com a supervisão de pessoal qualificado.
De fato, o EAD é uma consequência natural da mudança na forma como construímos nossas relações sociais e consumimos notícias e cultura, isto é, conhecimento. Não significa, entretanto, que devemos encarar a formação profissional da mesma maneira, em especial as áreas que impactam a segurança da sociedade, como é o caso das engenharias.
O mundo está em mudança, cada vez mais intensa, veloz. O mercado exige profissionais dinâmicos, empreendedores, com capacidade mais apurada em examinar diferentes cenários de forma integrada e humanística. No futuro, novas profissões devem surgir – atividades que, hoje, estão limitadas a um exercício de futurologia. As necessidades da população mudam, e os engenheiros do futuro devem estar preparados para atendê-las, sem, todavia, desprezar uma base sólida, construída ao longo de séculos de conhecimento científico acumulado.
Ricardo Rocha é engenheiro civil e presidente do Crea-PR.”
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